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Tudo por um vale-refeição

Não serei mentirosa, sinto falta de ter um vale-refeição. Mas não sinto falta do que eu preciso fazer para ter um vale-refeição. 

Na faculdade de Psicologia temos os estágios obrigatórios e os não-obrigatórios. Eu acreditava que passaria a faculdade apenas estudando, eu tenho e tive uma condição muito boa de vida. Porém, minha mãe não concordava muito com a ideia de eu ficar em casa, sem fazer nada. E, de fato, eu estava bem folgada mesmo. Depois de uma briga feia que tivemos, decidi no fim do primeiro semestre que iria procurar um trabalho. 

Cheguei em casa mostrando pra minha mãe que agora a sua filha tinha uma Carteira de Trabalho. Até hoje não há nada escrito nela, nem sei onde está guardada! Eu não coloquei no meu pensamento que eu não tinha nem um ano de faculdade, quem me contrataria? 

Fiquei um ano procurando estágio. Durante esses longos, eternos, meses eu trabalhei na loja da minha mãe e eu descobri como é horrível trabalhar em algo que você não gosta. Ao mesmo tempo que esse trabalho me ajudou a conseguir falar com as pessoas. Não somente ele, mas todo esse horizonte que se mostrava: faculdade, trabalho, entrevistas de emprego. 

Meu tão sonhado trabalho chegou! Estagiária de uma multinacional. Foram dois anos em que me senti realizada e tinha todo mês meu VR. Ganhei mais uma bolsa mérito de estudos por seis meses na faculdade, mais uma bolsa para a minha felicidade. Ainda tinha que fazer os estágios obrigatórios da faculdade e estava tudo tranquilo. Tudo fazia sentido pra mim, estava no auge da alegria. Eu repudiava a ideia de atender uma pessoa, de lidar com o sofrimento de outra pessoa. Mas os estágios obrigatórios são de fato obrigatórios e eu não poderia fugir.

Você já assistiu Divertidamente? Caso não tenha assistido, por favor assista, é muito legal! No filme tem um momento em que os divertidamentes veem as construções da Riley quebrando. Foi exatamente assim que me senti, como se uma das estruturas que fazia sentido para mim desmoronasse.  

Eu ouvi pela primeira vez o sofrimento do outro e eu tinha ali que me entregar a relação, de acolher aquela história violenta. E entenda, é um trabalho extremamente difícil, mas foi como se um novo mundo abrisse para mim. Eu demorei para enxergar o que estava na minha frente: eu havia me encantado pela clínica. Aquilo fazia sentido para mim, mesmo que em palavras eu não consiga explicar. Isso não significa que eu não queria mais trabalhar onde estava, mas que eu havia encontrado algo que era mais valioso para mim. E agora que eu via aquilo, desver era impossível. 

Ansiedade, surtos, insônia. Como contar para as pessoas que eu não queria mais seguir o plano que eu defini para mim? Que eu batia o pé e discutia com quem dizia que eu poderia mudar? 

Meu contrato de estágio estava acabando, tinha de decidir entre continuar no mercado de trabalho ou sustentar o que fazia sentido para mim. Sustentar aquilo que faz sentido para nós, muitas vezes, não é nada fácil. Aparenta ser mais fácil sucumbir ao que é mais fácil, ao que já está ali. Mas esquecemos que aquilo também pode nos fazer sofrer, até mais do que sustentar nossa decisão. 

Eu escolhi sustentar e seguir sustentando essa decisão até hoje. E, para minha surpresa, isso virou motivo de piada da minha família. Para eles era uma decisão simples de ser feita, mas para mim era como andar todo dia atormentada com medo e angustiada. A gente nunca sabe de fato o quanto o fardo do outro pesa, justamente porque o sentido que o outro dá a cada instante de sua vida, é somente seu. 

Aquele estágio clínico fez eu ver a vida de outro modo. Eu conseguia ajudar o outro em seu sofrimento. Eu conseguia lidar com a escuta do sofrimento. E me senti bem naquele papel. Eu continuei ouvindo e continuei me empenhando para compreender o que aquela pessoa trazia ao meu consultório - mesmo que fosse o ambiente da clínica-escola, me sentia em um ambiente meu. 

Apesar de descobrir que conseguia lidar com aquilo, não acabou com o meu medo, minha apreensão. Acho que de alguma forma isso nos acompanha no começo - até o fim - da nossa carreira. Não sabia o que ia acontecer - vejo isso como a beleza da clínica, que nos coloca no que é mais próprio da vida: o não saber - mas que de alguma forma eu acreditava em mim e que eu ia dar conta daquilo. 

Ao mesmo tempo que eu me lembro de como foi esse estágio, é como um borrão. Eu lembro, mas o que me vem à mente é a sensação. Eu agradeço as tramas que foram sendo construídas, com a esperança de que todas foram feitas repletas de sentido, que me trouxeram até aquela cadeira com aquela pessoa. 

Fiz diversos estágios, alguns eu não gostei, por exemplo os de neuropsicologia. Aplicar os testes era como me enjaular e não deixar a espontaneidade acontecer. Atendi casal, também não foi a melhor experiência que eu tive. Atendi adolescente, tive que lidar com o silêncio e com minha irritação ao atender. 

Nem todos foram mil maravilhas, ou foram transformados, ou saíram mais próximos de si. Reconhecer as limitações que existem em nossas vidas profissionais também é necessário. Mas que cada sessão, a cada palavra trocado, a cada acolhimento, o sentido, a vontade de exercer aquela profissão se mantiveram. 

Os percalços sempre vão existir, aquilo que odiamos fazer, mas se o sentido daquilo caminhar conosco e se renovar a cada momento, ainda escolhemos seguir nessa jornada. 

Como minha escolha continuou sendo a clínica, com ela chega mais um momento levemente tenebroso: qual abordagem seguir? 


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